quinta-feira, 23 de abril de 2015

Hora do café

Desde que me entendo por gente, todos os dias, as 16h, minha avó vai até a cozinha para tomar café. Usa sempre uma xícara grande, coloca 1/3 de leite quente, completa com café preto e doce (que antigamente ela mesma fazia) e molha nele uma fatia de pão com margarina. De vez em quando pára de mastigar, ri de algum pensamento, e continua sua rotina por quase uma hora.

Hoje ela não enxerga e não escuta mais o grande relógio pendurado na parede da cozinha, mas parece que seu relógio biológico sabe muito bem o horário de levantar. São 16h, e, do meu quarto, eu consigo escutar ela se levantar, mexer no guarda-roupas, passar no banheiro, e então se dirigir para a cozinha. Me levanto e vou ao seu encontro. Encontro-a perto da piá, as mãos no bolso, a expressão de quem estava aprontando alguma coisa e foi pega no flagrante.

Pergunto se ela quer alguma coisa. Como sempre, ela responde que não, mas suas mãos se mexem dentro dos bolsos. Espertinha. Pergunto se ela quer tomar café, e digo que vou servi-la.
É fácil perceber seu incômodo: ela não gosta que preparem o seu café. Mas eu não quero e não gosto que ela arrume sozinha. Já perdi a conta de quantas xícaras já foram quebradas ou estão trincadas, porque ela esbarra nos armários ou não tem coordenação para pegar apenas uma na prateleira. Também não gosto que ela mexa com facas... Ela parece tão pequena e frágil, e suas mãos as vezes tremem, e eu evito deixar facas ao seu alcance. Mesmo assim ela se vira: se não comprarmos o pão já fatiado, ela arranca os pedaços com a própria mão.
Ela se senta na mesa e, enquanto eu esquento o leite, a ouço mastigar. Me viro e vejo ela, sorrateira, pegando pedaços de pão de dentro dos bolsos. Ela come um pedaço e joga outro no chão para os cachorros.
Quando percebe que estou olhando, ela pára, vira-se, olha para a cachorra e diz, brava: "não adianta pedir, você não pode comer". Depois olha pra mim, sorri, e justifica: "acho que ela está com fome, mas eu não dei pão nenhum". Eu rio, aceno com a cabeça: eu sei que não.
Coloco a xícara de café com leite em cima da mesa e pergunto se ela quer comer pão ou bolachas. Ela diz: "bolachas... pão a menina já me deu" - e então tira duas grandes fatias de dentro do bolso e se põe a comer.

Eu me sento também e ela me oferece uma das fatias. "Trouxe pra você também", ela diz. Eu aceito. Encho uma xícara de café puro pra mim, e ela começa a conversar. Me conta sobre sua casa em Santa Catarina, sobre a irmã que vai lhe mandar uma máquina de pão, e sobre o fato de ela mesma saber fazer um pão delicioso com "fermento de litro". Ela não escuta o que eu falo, a menos que eu me coloque a gritar, então eu apenas aceno com a cabeça e sorrio. Me lembro bem desse pão, que ela fazia de tarde e nos deixava comer ainda quente. Me lembro também da força que ela tinha pra usar o cilindro, e de como sempre fazia mais massa, pra depois fritá-la e deixar para eu e meus irmãos: "pãozinhos pequenos, para crianças pequenas". As lembranças me dão água na boca e me perco nessas memórias - nem escutei tudo o que ela tinha pra dizer.

Ela termina de comer e pede outra xícara de café, dessa vez sem leite.
E eu entendo de onde aprendi a gostar tanto de café.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Sobre o passado

A história que conto pra vocês é esta que começou muito (muito!) antes de mim, embora eu prefira me atentar aos fatos dos quais pude participar.
Se a história começa comigo, é somente porque é da minha história que eu posso lembrar, que eu posso contar, que eu posso modificar e dar as caras e gostos que eu quiser  - embora seja a história de outros.
E para que vocês entendam e consigam (re)viver tudo isso junto comigo, preciso apresentar-lhes alguns personagens e contar-lhes como essa história começou:

Cerca de 65 anos atrás, quando meu [falecido] avô Telésfero, na época viúvo e pai de 5 crianças, casou-se com a minha avó Aldérica (Aldina, para os mais chegados), com quem viveu por mais de 40 anos e com quem teve mais 5 filhos.
Meus pais (à direita) se conheceram em 1989 e se casaram em 1990, quando foram morar com meus avós maternos.
Eu nasci em 1992.
Nessa foto, tirada no meu batismo, estou no colo da minha avó paterna (D. Tereza) e ao lado das irmãs do meu pai (Tia Silvia e Tia Silvana).
 
Meu avô morreu em meados de 1991, na época em que minha mãe teve um aborto espontâneo. Ela engravidou novamente em 1992, e eu nasci. Quando ela precisou voltar a trabalhar, eu fiquei sob os cuidados da vó Aldina.


Meus bisavós paternos, em 1992, realizando o sonho de ter bisnetos.
A bisa Floriza faleceu em dezembro de 1993, então infelizmente não tenho histórias dela para contar...



1993. Meu aniversário de 1 ano, na companhia da vó Aldina e da vó Tereza.

Um ano depois, meu irmão (Mateus) nasceu e começamos a dividir nosso time de  avós.
Por ser mais agitado, ele roubou a cena.
Nas fotos aqui em baixo, em 1995, ele passeando com o bi Jonas e ele ajudando a vó Aldina a "cuidar da horta".


A história continua normalmente até 1997, quando minha mãe chega em casa com a notícia de que tinha mais um filho a caminho (eu e o Mateus havíamos pedido muito pra Deus, e apostamos sobre ser menina ou menino - eu ganhei!)

Em 1998 conhecemos nosso avô paterno, o Sr. Oriel (longa história, que um dia pretendo contar aqui também)

Embora fosse legal ter um avô, a novidade mesmo era a Raquel...

  O tempo passou e nesse tempo todo a gente teve várias festas em família.
A vó Aldina gostava de reunir os filhos e netos, e não perdia nenhuma oportunidade de fazer o prático típico TORTEI (logo vou falar sobre isso também, mas, por enquanto, fiquem sabendo que é uma comida muito calórica e gostosa - coisa de italiano, sabem?!)
Já o bi Jonas, gostava de exibir os bisnetos, especialmente nas festas infantis. Nunca perdeu a oportunidade de nos comprar porcarias (para desespero da minha mãe)


Algum tempo depois, conhecemos outro bisavô, o Bi Miguel (pai do Sr. Oriel)...
Nem sei de quando são essas fotos, mas na época ele ainda tinha uma plantação e cuidava das cabras.
Hoje, aos 97 anos, ele perdeu a visão, mas ainda não aprendeu que precisa descansar.


Se tem uma coisa que nunca faltou, foi festa de aniversário. E, embora os avôs e bisavôs nem sempre estivessem presentes, não posso dizer o mesmo das vós. Ela SEMPRE estavam lá com seus bolos e docinhos.
Pra completar, a vó Aldina e o Mateus fazem aniversário no mesmo mês, com uma semana de diferença, então a festa era sempre dupla.
Aqui, uma foto de 2004 e outra de 2008.
 


Em 2000, nós saímos da casa da vó Aldina porque meus pais conseguiram a sonhada casa própria. Mas fizemos algumas reformas e ela veio morar com a gente, num quarto só dela (até então, ela dividia o quarto comigo, o que não era nem um pouco legal).

Nessa época, eu já era "grandinha" e ela dispensou os cuidados comigo pra poder fazer companhia pra Raquel.
As duas assistiam televisão juntas, a Raquel estava aprendendo a ler e lia para ela (minha avó estudou até a quarta série, há mil anos atrás, então tinha algumas dificuldades), e chegaram até a montar Lego juntas.
Até 2008, era a vó Aldina quem fazia o almoço e limpava a cozinha. Ela tinha 88 anos de idade, era forte, fazia pão com fermento de litro e fritava as sobras da massa pra eu comer durante a tarde, fazia macarrão nas quarta-feira e polenta com frango nas quintas. Reunia toda a família pra comer tortei. Obrigava meu irmão a tomar banho todos os dias, e corria atrás dele pela casa até que ele limpasse aqueles pés sujos de brincar no quintal.
Brincava e brigava com os cachorros, e terminava de lavar a louça antes mesmo de sairmos da mesa. Depois tirava a roupa do varal e passava a tarde toda cochilando assistindo tv na sala. Todos os dias, pontualmente as 16h, ela tomava seu café da tarde (pão com margarina e duas xícaras de café preto), assistia o começo da sessão da tarde, e as 17h ia tomar banho, pra depois voltar pra sala e reclamar que meus pais estavam demorando muito pra voltar do trabalho.
Era a mesma rotina todos os dias, durante quase 20 anos (lembro, novamente, que a história que conto é a minha história), até que, no começo de 2009, nós percebemos que ela começou a mudar.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sobre as histórias

Quando minha avó materna começou a demonstrar os primeiros sintomas de Alzheimer, eu não imaginei que, ao longo do tempo, ela [re]viveria tantas histórias.
Eu já tinha ouvido falar sobre a doença e sabia o que a maioria das pessoas parecia saber: "o Alzheimer é a doença que faz esquecer", e, de uma maneira que ninguém parece saber explicar, "essa doença mata".
Foi assim que perdi meu bisavô paterno em 2010, no "auge" dos seus 86 anos de idade (agora posso revelar sua idade verdadeira, mas, enquanto vivia, era inadmissível dizer que ele já tinha passado dos 75). Embora economizássemos com as velas de aniversário, toda a família se entristeceu durante os pouco mais de três anos em que, gradualmente, ele perdia a memória, e, com ela, outras funções psicológicas como percepção e atenção.
No começo, era  engraçado: ele contava histórias, inventava histórias, misturava histórias.... Nem sei dizer quantas vezes ouvi sobre os cavalos, sobre o sítio que ele quase comprou, sobre as terras que ele tinha abandonado em algum lugar, e sobre os animais que ainda precisava buscar. Depois ele contou, misturou e errou nomes... e então os esqueceu. Brigou com meu pai, com a minha avó, e achou que todos eram estranhos e que estavam tentando envenená-lo. Tentou arrumar uma esposa. Parou de comer, de tomar banho, e aí não queria mais conversar com ninguém. Foi se fechando em um Mundo de memórias falhas que ele mesmo criou.
E eu, como [quase] psicóloga, comecei a achar que esse era o pior fim para uma pessoa: morrer pelo esquecimento, todos os dias, pouco a pouco. Morrer pela mente.

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Comecei esses escritos em 2013, quando minha avó materna já vivia o segundo ano com essa doença. Parece irônico, mas eu mesma não me lembro de todos os detalhes.
Sei que, naquela época, o que me motivou a escrever foi a presença do meu avô paterno, o qual veio de outra cidade para passar uns dias (talvez semanas) na casa da minha família. Minha avó, embora seja quase 30 anos mais velha do que ele, o chamava de pai ou de tio, e a presença dele (embora, infelizmente, não fosse a mais desejada naquele momento) fez minha avó reviver muitas lembranças da sua infância, e isso fez crescer em mim a vontade de registrá-las, seja em fotos, textos, ou em minhas próprias memórias.
As coisas que agora eu compartilho com vocês, o faço porque sei que, conforme envelhecer, minha mente se definhará também. Justo eu, que tanto me gabo da boa memória que tenho...!

Prestem atenção aos detalhes. A história nunca é linear, e por vezes não fará sentido algum. Por isso lhes dou a permissão de esquecê-la logo que fecharem a página. Mas, enquanto estiverem aqui, tentem lembrar-se. Esse é um museu de memórias mortas, um lugar para desafiar o tempo, o espaço e as próprias lembranças; um lugar onde presente, passado e futuro se misturam e se distanciam a cada minuto; e se renovam, se repetem, se revivem, e se acabam... mesmo que talvez nem tenham existido.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Sobre avós

Se tem um tipo de gente que eu gosto, é avó.
Aquelas que tem cheirinho de avó, usam roupas de avó, e (nham!) cozinha bem como só as avós conseguem fazer.
Que me perdoem as avós modernas, que são sempre novas e bem arrumadas - eu admiro o espírito jovem, mas gosto mesmo é do vestido florido, cheio de bolsos pra guardar balas e moedas. Gosto do cardigã escuro, do cabelinho ralo preso em um coque, e das golas. Ah, as golas! Quando eu era criança, só sabia dormir no colo da minha avó, e me aninhava nela e enfiava meu rosto no vão do seu pescoço só pra sentir o perfume que tinha na gola. Avós tem um cheiro diferente, especial, como se a  pele delas transpirasse amor.
E que me perdoem as avós ranzinzas, que gostam mais de brigar e de discutir - eu admiro sua experiência, e sei que vocês sofreram e trabalharam muito para chegar onde estão, mas gosto mesmo é do sorriso doce, da casa sempre cheia de alegria e do coração puro, sem mágoas. Gosto daquelas que viveram muito e que ainda assim tem carinho e amor para distribuir.
Porque, mais do que qualquer outra coisa que elas saibam fazer (e, acreditem, as avós sabem fazer TUDO), elas tem um jeito particularmente doce de dar colo e de mimar, e, mesmo tendo outros 26 netos, você sai de perto delas se sentindo a pessoa mais especial do mundo - como se fosse o único.