sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Sobre a minha despedida

Não considero minha avó como uma pessoa sábia ou com grande capacidade intelectual. Ela nunca me deu conselhos, nunca me deu presentes, e nos últimos anos nem gostava muito de conversar. Desde que tenho minhas primeiras memórias, a única coisa que eu sabia que minha avó gostava de fazer era de se movimentar: fazer pão, caminhar, cortar lenha, correr atrás do meu irmão.
Mas foi justamente por toda essa energia, que ela me ensinou duas emoções e movimentos valiosos: o cuidado e a paciência.
Primeiro, porque desde criança foi ela quem cuidou de mim, que me alimentou, vestiu, e se preocupou comigo enquanto meus pais trabalhavam. Depois, porque o Alzheimer fez com que ela voltasse a ser criança, e então fui eu quem precisou cuidar, alimentar, e se preocupar com ela enquanto meus pais trabalhavam. Com ela eu aprendi a desempenhar dois papeis: a criança cuidada, e o adulto cuidador.
Nos últimos anos, com a demência, nos aproximamos mais do que em qualquer outra fase. E foi então que eu percebi o quanto minha avó era uma mulher fantástica, energética, e com um coração gigante. Todos os dias ela se deliciava com abraços, mexia as mãos como se tentasse dançar, e gargalhava tão alto que suas risadas enchiam a casa toda. Os gatos dormiam com ela todas as tardes; as senhoras da igreja vinham visita-la sempre que possível; e nos poucos lugares que ela ainda frequentava, todas as pessoas elogiavam o quanto ela era carinhosa: cumprimentava a todos, abençoava, cantava e fazia orações.
Ela não sofreu. Ela viveu sorrindo, rezando, e cuidando de nós; e, ao fechar os olhos pela última vez, ela o fez tranquila, rezando, e sendo cuidada por aqueles a quem ela sempre deu amor. Ela nunca esteve sozinha. Viveu cercada de amor e é assim que ela se foi, depois de 95 anos de vida, de cuidado e de paciência.
Não fiquei muito tempo do velório, não me aproximei do caixão. Quando recebi a notícia e fui para casa, a primeira coisa que fiz foi tomar café – porque eu sabia que, se ela estivesse desperta, ela perguntaria se eu estava com fome e me mandaria comer. As coisas que eu aprendi com ela, como comer nas horas certas e tentar sempre ter uma companhia à mesa, eu nunca vou esquecer. Ontem, não me despedi. Minha despedida foi cara-a-cara, há dois dias, quando ela começou a enfraquecer e balbuciou que precisava ir embora. Eu disse que a amava, mas que já estava na hora de ela nos deixar – e nós ficaríamos bem.

Por isso, se aí do céu a senhora puder ler isso, saiba que eu estou bem. Saiba que todos estão tristes, que a mãe vai levar muito tempo para superar, mas que todos ficarão bem. Do jeitinho que a senhora ensinou.


Te amo, vó. Obrigada por todas as experiências que a senhora me permitiu viver, e obrigada por ter sido uma companhia tão alegre.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Sobre paciência, cuidado e ajuda

Cuidar de outra pessoa exige amor, certo preparo, e uma paciência absurda.
Por isso eu estava procurando as palavras certas para redigir esse texto sem parecer que estava apenas reclamando sem fundamentos (acreditem, eu gosto muito de reclamar e seria difícil fugir dessa possibilidade). Tudo o que eu pensava em falar sobre paciência  caía no que todo mundo já sabe: “cuidar de alguém exige preparo, amor, e uma paciência absurda”. E eu não quero soar repetitiva.
Muito menos quero soar pessimista ou dramática, explicando para vocês o quanto, às vezes, me sinto cansada, desmotivada e (pasmem!) sem paciência.
A verdade é que é assim que eu me sinto, especialmente depois de cinco anos de cuidado e força que eu tenho tentado transmitir para a minha velhinha. É claro que a minha mãe ainda faz muito mais do que eu, porque é ela quem dá banho, troca as fraldas, lava as roupas (um dia conto para vocês sobre a nossa rotina)... mas sou eu quem passa o dia-a-dia aqui, ouvindo a risada dela no final do corredor, correndo atrás de comida, café, e recolhendo os pedaços de pão que ela joga no chão. E isso cansa, cansa muito.
Mas não quero soar dramática.
Então encontrei no Facebook a página de uma mulher que relata toda a evolução do Alzheimer da mãe, uma velhinha bastante simpática e que em muito me lembra a minha avó. Hoje ela postou algo sobre o quanto os cuidadores precisam de apoio, e relatou ter se sentido sozinha, ter chorado bastante, ter enfrentado longas crises, mas sempre com o pensamento pseudo-positivo de que “se eu não me ajudar, ninguém mais vai”.
Uma parte de mim orgulhou-se pela força e pela coragem.
Outra parte invejou tudo isso.
Uma outra parcela sentiu, de maneira bem forte, a empatia pela situação.
Mas a quarta parte (e hoje, nesse texto, essa parcela é maior do que todas as outras) sentiu muita solidão.

Solidão porque, de todos os casos que leio (e eu pesquisei bastante antes de chegar até aqui), sempre vejo relatos de filhos que cuidam sozinhos, de idosos que se cuidam sozinhos, de pessoas que necessitam, mas que não recebem qualquer tipo de amparo. Penso sobre o que eu vivo todos os dias, sobre deixar de fazer coisas para mim, sobre procurar estágios e empregos alternativos que não comprometam meus horários com minha avó. Lembro que, durante a faculdade, fazia os estágios no período em que ela estava dormindo. E lembro especialmente do dia em que ela escorregou no chão do banheiro, e eu não tive forças para levanta-la. Eu só a ajeitei no chão, pra que não ficasse torta e pra que não se machucasse, sentei ao lado dela, e fiquei esperando o tempo passar, fazendo companhia até que outra pessoa aparecesse e pudesse ajudar.
Também lembro todas as vezes em que minha mãe deixou de sair, do quanto acordou no meio da noite porque minha avó também acordava e não queria voltar dormir. Ou quando ela desmaiou tomando banho e minha mãe teve que carrega-la nos braços e coloca-la na cama.
Lembro o dia em que ela ficou nervosa, logo que começou a esquecer, e brigou comigo porque eu estava limpando a casa. Ela me bateu, e minha única reação foi chorar. Chorar de medo, de vergonha, de dor. Dor porque o tapa tinha realmente doído (na pele e no ego), medo porque eu sabia que a tendência era piorar...

Quando me propus a escrever esse blog, milhares de boas histórias encheram a minha mente. Convivi com a minha avó praticamente todos os dias nos últimos 23 anos, então não faltam histórias legais para contar: as papinhas, as vezes que eu dormia no colo dela, os tombos, a horta, o desespero que ela vivenciou quando quebrei o braço pela primeira vez (na frente dela), a leve preocupação que ela sentiu quando quebrei o braço pela segunda vez (de acordo com minha mãe, eu era uma criança meio panaca), as fugidas de casa, os cafés da tarde, o banho pontual as 17h...
Mesmo assim, sabia que esse blog não seria só sobre boas histórias. Pelo contrário. Eu me propus a escrever sobre os problemas decorrentes da sua doença, e na maioria das vezes, embora as histórias sejam comoventes e/ou engraçadas, na vida real elas não passam de verdadeiros problemas.

O fato é que não basta ser forte. Não basta fazer piada, rir das coisas engraçadas que minha avó faz, zoar a risada macabra que ela solta às vezes, de madrugada, ou brincar com o fato de que ela sempre esquece que já trocou de roupa e vive colocando um vestido em cima do outro. É engraçado, mas é triste. E cansa, e emociona, e dói muito.
Então não adianta respirar fundo e pensar que “preciso ser forte”. NINGUÉM deveria precisar ser forte sozinho, porque todos, em algum momento, precisam de ajuda. A paciência resolve um pouco as coisas, permite esperar com mais calma, mas não tem como não enlouquecer se não houver alguém para ajudar.

Sem querer soar egoísta (já basta o drama!), quem cuida também precisa viver a própria vida. E acho que isso é um processo que os cuidadores tendem a esquecer: cuidar de si mesmos, viver, sair, arrumar um emprego, seguir a carreira.
Cuidar de si mesmo também exige uma dose de amor, preparo, e uma paciência absurda. 
E na maior parte das vezes os cuidadores também precisam de cuidados.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Corrente do bem

Quem me conhece sabe que eu tenho uma admiração muito grande pela minha família. E embora seja bem clichê dizer isso, eu digo: foram eles quem me ensinaram e me passaram todos os valores que eu tenho, as minhas crenças e meus ideais mais importantes, meu amor pelas pessoas, pela vida, por Deus, minha vontade de aprender, de buscar conhecimentos, e de crescer sempre. Tudo o que sou hoje, e todas as possibilidades que tenho, devo aos meus familiares e amigos mais próximos, que me ensinaram sobre tudo o que sei.
E em meio a tantos ensinamentos e tantas experiências, existem temas que se repetem e que se tornam ainda mais importantes para mim. Hoje quero falar sobre um deles: a bondade.
O filme “A corrente do bem” (ou Pay it Forward) retrata isso de uma forma bem interessante: Trevor cria uma onda de bondade ao retribuir cada favor recebido com outros três favores – produzindo mudanças na vida de todas as pessoas que convivem com ele e que aderem à sua ideia. Se hoje em dia parece ser utópico pensar no Bem circulando por aí como uma corrente que liga todos nós, a história que quero contar hoje tem exatamente o objetivo de nos mostrar mais um elo e também, quem sabe, uma esperança.

A história que hoje conto aconteceu há quase 40 anos, logo que meus avós maternos se mudaram para Campo Mourão e alugaram uma casa em um grande quintal por aí. No quintal havia outras casas, todas sem muro ou divisões, e a vida de cada um acabava se confundindo com a vida de todos.
Na casa dos fundos, uma mulher, o marido, e três crianças. Família feliz até o dia em que ela entra correndo pela porta da casa dos meus avós, puxando as crianças pelo braço, com o olho roxo e em prantos por ter apanhado do companheiro, o qual vinha atrás, bufando de raiva e exigindo que a “amada esposa” voltasse para casa. Meus tios, jovens e fortes, se puseram na porta, e aí o machão não teve coragem de entrar (gente assim só enfrenta quem não pode se defender – por quê será?). Minha avó, na cozinha, acolheu a moça, lhe deu comida, um lugar pra dormir, e nos dias seguintes conversou muito com ela – até manda-la embora.
E a moça foi. Seguiu os “conselhos” e aceitou os cuidados da minha avó, fez as malas e foi: foi viver a própria vida, foi se libertar da violência e do abuso que sofria quase todos os dias. Foi.
Minha avó se ofereceu pra cuidar da filha mais nova, uma menininha de poucos meses de vida que ainda não tinha condições de ser carregada pela mãe sabe-se-lá-pra-onde. E a moça foi embora, levando na mala um punhado de medos e inseguranças, mas a certeza de que alguém estava orando e cuidando dela, mesmo a distância.
Um ano depois, a moça voltou. Isso lá pela metade da década de 70. Voltou com a mala cheia, com um emprego na “cidade grande”, com um lugar pra morar e um monte de possibilidades. Pegou a filha nos braços, agradeceu, chorando, pela ajuda, e foi embora de novo. Mas manda lembranças sempre que pode, tem o carinho de uma filha e a gratidão de quem tudo deve e nem sabe como agradecer.

Essa semana a mulher me encontrou, leu meus textos, viu as fotos e assistiu aos vídeos que eu fiz sobre a minha vó, e então repartiu a sua história – história que até então eu desconhecia, e que me emocionei muito ao saber.
Parece uma bobeira muito grande eu me encantar com tudo isso, mas não posso evitar. Quem já teve a OPORTUNIDADE de ver a vó Aldina (mesmo agora, depois do Alzheimer), sabe o quanto ela erradia carinho e afeto, o quanto ela gosta de sorrisos e de encher todo mundo com comida, conforto e abraços. Ela espera o melhor das coisas e retribui com o melhor que há nela, e assim a corrente do bem se fortifica e segue, passa adiante modificando a vida de todos.

Há 40 anos, ela salvou alguém. E a bondade que ela me ensinou a ter me salva e me dá esperança todos os dias.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Sobre o dia em que tudo começou

As pesquisas científicas demonstram que o Alzheimer geralmente aparece depois de um trauma, quando a pessoa vivencia algum período de mudança brusca e não possui estrutura para se adaptar, e alguns problemas já existentes podem aumentar o impacto dessa doença. No caso da vó Aldina, ficou bastante nítido para nós que ela começou a esquecer quando quebrou o fêmur e foi obrigada a ficar alguns dias no hospital e depois em casa, mas sem se levantar.
O acidente aconteceu no dia 11/09/2011, quando ela acordou e foi para o banheiro (que fica ao lado do seu quarto), mas escorregou na porta e caiu. Ela sempre foi muito ativa. Nossa casa tem uma calçada imensa, e, desde que eu me lembro, todos os dias ela acordava cedo e caminhava da porta até o portão várias vezes. A “caminhada” no quintal de casa durava pelo menos meia hora, e nossos cachorros sempre a acompanhavam – todo mundo se divertia com uma velhinha andando pelo quintal. Ela sempre teve as pernas fortes; ia à igreja sozinha, caminhando, toda semana; ficava de pé durante horas na frente do fogão enquanto preparava comida ou separava o “fermento de litro” que usava para fazer o pão. Suas pernas a levaram para muitos lugares, e sempre a trouxeram de volta em segurança. Mas não naquele dia em que, sabe-se lá por qual motivo, ela caiu.
Minha mãe a levou ao médico, que constatou uma lesão no fêmur e a necessidade de uma cirurgia. Tudo correu bem, mas nos poucos dias em que ela passou de recuperação no hospital, sua cabeça virou uma bagunça: a rotina, a comida e as pessoas eram completamente diferentes do que ela estava acostumada. É claro que tantos anos de exercício e cuidado não foram a toa e ela se recuperou bem rápido... Ela tinha 89 anos, acabara de passar por uma cirurgia, e os médicos não aguentavam mais seus pedidos para ir embora. Em menos de uma semana, ela já estava em casa – os médicos justificaram que o ambiente familiar seria melhor para a sua recuperação – mas como ela não podia andar ou forçar a perna, passou quase um mês dentro do quarto. Todos enlouquecemos um pouco. Ela tentava levantar, tentava andar, e em qualquer momento de distração, víamos ela quase fora da cama e precisávamos segurá-la. Ela não queria parar. Nós nos revezávamos para ficar com ela, almoçar juntos, levar comida e café durante o dia, e fazíamos o possível para que ela não ficasse sozinha.
Foi nessa época que a nossa rotina também mudou. Eu, meus pais e meus dois irmãos não podíamos mais sair juntos, porque um de nós sempre precisava ficar em casa. Como o meu quarto é ao lado do quarto da vó, e como eu estudava a noite e passava o dia todo em casa, parte do trabalho ficou para mim: precisava me certificar de que ela estava comendo, de que estava confortável, de que não ficasse triste.
Ao mesmo tempo em que isso era pesado, difícil, e muito estressante, também tinha seus momentos divertidos. Quando não se dava conta de que estava em recuperação, ela ria bastante e nos contava muitas histórias. Eu e ela nunca fomos próximas, então saber tantas histórias (a maioria em primeira mão) era bastante recompensador... eu me sentia (e ainda me sinto) bastante especial.


[continua...]

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Sobre filmes, OU "Para sempre Alice"

"Odeio que isso esteja acontecendo comigo... Preferia estar com câncer, aí não me sentiria tão envergonhada".

No filme Para sempre Alice (ou Still Alice), essa foi a cena que mais me impactou. Minha velhinha nunca falou isso, e duvido que falaria, especialmente se considerar o quanto ela sente-se bem por ser fisicamente saudável, mesmo aos 94 anos. Mas eu falaria, sim, por ser exatamente o que penso todas as vezes em que olho para a minha avó.
Não quero desmerecer nenhuma das doenças, mas sim apontar para o sofrimento que ambas carregam, e, mais do que isso, apontar para a nossa constante tentativa de ter CONTROLE sobre as coisas que acontecem em nossas vidas, por tentar julgar como válido ou inválido o sofrimento alheio, e por (em alguns casos) tentar comparar quem é que sofre mais. O fato é que todos sofremos, independente do grau, e ninguém pode tentar comparar isso - porque ninguém pode conhecer ou medir nossa DOR.
Câncer é ruim. Alzheimer é ruim. Assim como Parkinson, Demência, Esquizofrenia, e tantas outras doenças. E são ruins por vários motivos, mas principalmente porque: nos impedem de ser quem éramos. Nos impedem de fazer coisas que antes fazíamos, de pensar com clareza, de ter domínio ou sobre os próprios movimentos, ou sobre as reações fisiológicas, ou pensamentos e sentimentos, ou sobre a noção de realidade. Elas simplesmente nos tiram do nosso mundo e nos colocam em outro no qual precisamos conviver com diferentes estímulos e necessidades, e sem ao menos nos dar um aviso ou tempo para se preparar - embora eu não ache que "se preparar" faria uma grande diferença.

Então eu realmente entendo o comentário de Alice.
Gosto do meu corpo (porque sem ele, como eu iria viver?!), mas NADA me faria mais infeliz do que perder a minha mente. Sei que eu provavelmente me esqueceria de quem eu era, e que depois de um tempo, não faria mais diferença viver em uma realidade totalmente diferente da qual um dia eu estive acostumada. Mas eu veria fotos, ouviria histórias... e sofreria por saber que não conheço, que não REconheço nada daquilo.
Talvez, eu pensaria que seria melhor morrer. Alice também pensou. Até gravou um vídeo para si mesma, instruindo a como tentar se matar.
Mas não.

Com pouco mais de 1h de filme, a personagem parece encontrar algum conforto, e, durante uma palestra, diz:

A poetia Elisabeth Bishop disse: "A arte de perder não é difícil de dominar. Tantas coisas parecem ser cheias de intenção de perda, de forma que sua perda não é nenhum desastre".
Eu não sou poetisa. Sou uma pessoa convivendo com um mal de Alzheimer precoce, e me encontro aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo minha compostura, perdendo objetos, perdendo o sono, e principalmente perdendo memórias. Durante toda a minha vida, acumulei memórias. De certa forma, elas se tornaram os meus bens mais preciosos. A noite em que conheci o meu marido, a primeira vez que peguei meu livro nas mãos, criar meus filhos, fazer amigos, viajar o mundo... Tudo o que acumulei na vida, tudo pelo que eu trabalhei tanto... Está tudo sendo arrancado de mim agora.
Como podem imaginar, ou como sabem de fato, isso é um inferno.
Mas fica pior: Quem nos levará a sério estando nós tão distantes do que éramos? Nosso comportamento estranho e frases atrapalhadas mudam a percepção que os outros têm de nós, e também nossa autopercepção. Nós nos tornamos ridículos, incapazes, cômicos. Mas esses não somos nós. Essa é a nossa doença. E como qualquer doença, tem uma causa, tem uma progressão, e pode ter uma cura.
Meu maior desejo é que meus filhos, nossos filhos - a próxima geração - não precise encarar o que eu estou encarando. Mas, por enquanto, eu continuo viva. Sei que estou viva. E tenho pessoas que amo demais. Há coisas que ainda quero fazer.
Me condeno por não conseguir me lembrar  das coisas, mas ainda tenho momentos de pura felicidade e alegria. E, por favor, não pensem que eu estou sofrendo. Eu não estou sofrendo. Estou lutando. Lutando para ser parte das coisas. Para permanecer conectada com a pessoa que eu era. Eu digo "viva o momento", porque isso é tudo o que eu posso fazer: viver o momento; e tento não me punir demais por estar dominando a arte de perder.


O texto não é meu, mas às vezes penso que sim, que eu poderia ter escrito ou dito isso também. Não tenho Alzheimer, mas carrego a possibilidade. E isso me assusta. Por isso ver filmes sobre o tema me emocionam e me fazem refletir bastante. Por isso eu escrevo tanto, anoto tudo o que posso, faço rascunhos, mantenho a vida com o máximo de organização... para diminuir as chances de PERDER O CONTROLE.
O texto de hoje não foi necessariamente sobre a minha avó. Foi sobre o meu maior medo: o medo de perder, de esquecer.
Recomendo que assistam o filme - é um drama muito bom, de 2014, ganhador de alguns prêmios e bastante citado pela mídia. Identifiquem-se ou emocionem-se com Alice, com seu marido, com seus filhos, com a sua história de vida, com "a arte de perder".

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Para finalizar, deixo outras sugestões de filmes que falam sobre o tema:

Longe dela (2006): Fiona tem Alzheimer e o marido a leva para uma clínica especializada, na qual ela esquece o marido e se apaixona por outro homem.

A separação (2012): O filme se passa no Irão, onde Simin separa-se do marido Nader porque este se recusa a abandonar os cuidados do pai, que tem Alzheimer. Ele contrata uma empregada, que está grávida, mas se estressa com ela por não concordar com seu trabalho e a machuca, fazendo com que ela perca o bebê.

Diário de uma paixão (2004): Allie está internada em uma clínica para Alzheimer, e recebe constantemente a visita de Noah, que lhe lê trechos de um diário. Allie percebe se tratar do diário de sua própria vida e de sua grande história de amor.

A família Savage (2007): dois irmãos excêntricos precisam voltar a morar juntos quando recebem a notícia de que o pai está demente e precisa de cuidados constantes.

Meu pai, um estranho (1970): a vida de Gene muda completamente quando sua mãe morre e ele se vê obrigado a abandonar o sonho de se casar e de ser professor em outro estado para cuidar do pai, que está começando a desenvolver Alzheimer.

Poesia (2010): Mijja é uma sul-coreana que cuida do neto e de um idoso, e que, para encontrar paz em sua vida, inscreve-se em um curso de poesia, sendo instruída à observar melhor o que está ao seu redor para poder inspirar-se. Nesse contexto, ela é diagnosticada com Alzheimer.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Sobre ler, escrever e contar histórias

Minha maior alegria na infância era ser a irmã mais velha: eu vi meus irmãos nascerem e acompanhei todo o desenvolvimento deles, participei de todas as festas de aniversário, brinquei com todos os brinquedos, aproveitei e reaproveitei todas as fases. Mas a coisa que eu mais gostei de fazer foi ensiná-los a ler.
E que surpresa a minha quando, no final de uma certa tarde, ao chegar da escola, encontro a Raquel sentada na sala com um livro nas mãos, contando uma história para a minha avó, que ouvia bastante interessada.
Naquele dia perguntei para os meus pais porque ela mesma não pegava o livro para ler. Minha mãe me explicou que a vó precisou largar os estudos muito cedo, quando terminou a quarta série, porque ficou órfã de pai e, por ser a irmã mais velha, precisou começar a trabalhar para ajudar no sustento da família. Ela tinha 12 anos, pouco mais do que eu tinha quando indaguei essa história, morava no interior de Santa Catarina e estava se preparando para ir a uma cidade maior onde poderia terminar o que hoje chamamos de ensino fundamental... e ser professora. Esse era o sonho - e ele foi interrompido porque naquela época era difícil sonhar tendo tantas obrigações a cumprir.
Tudo isso aconteceu cerca de 70 anos antes de a Raquel começar-lhe a contar histórias.
Alguns meses depois, em um domingo de manhã, vimos a vó sentada na mesa da cozinha com um jornal nas mãos. Ela lia só as manchetes (porque as reportagens são em letras pequenas demais para ela ler), mas consideramos um avanço. Nos aniversários, sempre fez questão de assinar seu próprio nome nos cartões de felicitação. Também gostava de receber o carteiro e assinar as encomendas.

Nunca conversamos sobre isso - talvez porque naquela época eu ainda não compreendesse quanta riqueza e inteligência habitava naquele pequeno corpo - mas eu sempre desconfiei de que havia um prazer muito grande em mostrar para as pessoas que ela sabia sim ler e escrever, que podia ouvir histórias e que também saberia reproduzi-las.
Foi assim por muitos anos até que a sua visão ficou ainda pior devido ao agravamento da catarata (que deixou seus olhos com um tom acinzentado bonito, mas nada úteis) e logo que os primeiros sintomas da demência começaram a aparecer, sua mão tremia ao tentar escrever algumas palavras. Certa vez, ao ver um cartão de aniversário, ela se pôs a chorar porque não lembrava mais de como assinar seu próprio nome
Ainda assim, continuou a enriquecer nossas vidas com suas histórias. Foi nessa época, em meados de 2008, que ela me contou sobre suas ambições de ser professora, que me disse pra estudar, ler bastante, me informar... quem sabe um dia eu poderia ensinar a alguém tudo aquilo que estava aprendendo.
Dessa vez, quem se pôs a chorar fui eu.
Queria dar a ela a oportunidade de ter estudado mais, de ter feito faculdade, de ter lecionado. É uma pena que tantos potenciais tenham sido desperdiçados porque antigamente não se podia sonhar tendo tantas obrigações para cumprir.

Mas... sobre tudo o que aprendi na faculdade e nas minhas leituras sobre a terceira idade, um tema que me chamou bastante atenção foi a capacidade humana de dar um novo significado às próprias vivências. Temos uma capacidade imensa de ressignificar, de reviver, de restaurar... Porque da mesma forma que podemos encher de cargas ruins um sentimento que outrora foi bom (vide os ex-relacionamentos, que nos fazem tão bem e de repente deixam só mágoas para curar), também podemos percorrer o caminho contrário, e rechear de sentimentos bons as experiências que, na época em que foram vividas, não foram tão boas assim.
Por quê eu estou falando sobre isso?
Porque hoje em dia, minha avó pouco se lembra dos fatos que a levaram a parar de estudar. Mas na sua memória já bastante comprometida, ela reescreveu o final da história, e hoje, enquanto me vê no computador ou com um livro nas mãos, ela relata sobre como foi bom estudar, e sobre o quanto ela gosta de ser professora e de ensinar as crianças a ler.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Hora do café

Desde que me entendo por gente, todos os dias, as 16h, minha avó vai até a cozinha para tomar café. Usa sempre uma xícara grande, coloca 1/3 de leite quente, completa com café preto e doce (que antigamente ela mesma fazia) e molha nele uma fatia de pão com margarina. De vez em quando pára de mastigar, ri de algum pensamento, e continua sua rotina por quase uma hora.

Hoje ela não enxerga e não escuta mais o grande relógio pendurado na parede da cozinha, mas parece que seu relógio biológico sabe muito bem o horário de levantar. São 16h, e, do meu quarto, eu consigo escutar ela se levantar, mexer no guarda-roupas, passar no banheiro, e então se dirigir para a cozinha. Me levanto e vou ao seu encontro. Encontro-a perto da piá, as mãos no bolso, a expressão de quem estava aprontando alguma coisa e foi pega no flagrante.

Pergunto se ela quer alguma coisa. Como sempre, ela responde que não, mas suas mãos se mexem dentro dos bolsos. Espertinha. Pergunto se ela quer tomar café, e digo que vou servi-la.
É fácil perceber seu incômodo: ela não gosta que preparem o seu café. Mas eu não quero e não gosto que ela arrume sozinha. Já perdi a conta de quantas xícaras já foram quebradas ou estão trincadas, porque ela esbarra nos armários ou não tem coordenação para pegar apenas uma na prateleira. Também não gosto que ela mexa com facas... Ela parece tão pequena e frágil, e suas mãos as vezes tremem, e eu evito deixar facas ao seu alcance. Mesmo assim ela se vira: se não comprarmos o pão já fatiado, ela arranca os pedaços com a própria mão.
Ela se senta na mesa e, enquanto eu esquento o leite, a ouço mastigar. Me viro e vejo ela, sorrateira, pegando pedaços de pão de dentro dos bolsos. Ela come um pedaço e joga outro no chão para os cachorros.
Quando percebe que estou olhando, ela pára, vira-se, olha para a cachorra e diz, brava: "não adianta pedir, você não pode comer". Depois olha pra mim, sorri, e justifica: "acho que ela está com fome, mas eu não dei pão nenhum". Eu rio, aceno com a cabeça: eu sei que não.
Coloco a xícara de café com leite em cima da mesa e pergunto se ela quer comer pão ou bolachas. Ela diz: "bolachas... pão a menina já me deu" - e então tira duas grandes fatias de dentro do bolso e se põe a comer.

Eu me sento também e ela me oferece uma das fatias. "Trouxe pra você também", ela diz. Eu aceito. Encho uma xícara de café puro pra mim, e ela começa a conversar. Me conta sobre sua casa em Santa Catarina, sobre a irmã que vai lhe mandar uma máquina de pão, e sobre o fato de ela mesma saber fazer um pão delicioso com "fermento de litro". Ela não escuta o que eu falo, a menos que eu me coloque a gritar, então eu apenas aceno com a cabeça e sorrio. Me lembro bem desse pão, que ela fazia de tarde e nos deixava comer ainda quente. Me lembro também da força que ela tinha pra usar o cilindro, e de como sempre fazia mais massa, pra depois fritá-la e deixar para eu e meus irmãos: "pãozinhos pequenos, para crianças pequenas". As lembranças me dão água na boca e me perco nessas memórias - nem escutei tudo o que ela tinha pra dizer.

Ela termina de comer e pede outra xícara de café, dessa vez sem leite.
E eu entendo de onde aprendi a gostar tanto de café.