quarta-feira, 24 de junho de 2015

Sobre ler, escrever e contar histórias

Minha maior alegria na infância era ser a irmã mais velha: eu vi meus irmãos nascerem e acompanhei todo o desenvolvimento deles, participei de todas as festas de aniversário, brinquei com todos os brinquedos, aproveitei e reaproveitei todas as fases. Mas a coisa que eu mais gostei de fazer foi ensiná-los a ler.
E que surpresa a minha quando, no final de uma certa tarde, ao chegar da escola, encontro a Raquel sentada na sala com um livro nas mãos, contando uma história para a minha avó, que ouvia bastante interessada.
Naquele dia perguntei para os meus pais porque ela mesma não pegava o livro para ler. Minha mãe me explicou que a vó precisou largar os estudos muito cedo, quando terminou a quarta série, porque ficou órfã de pai e, por ser a irmã mais velha, precisou começar a trabalhar para ajudar no sustento da família. Ela tinha 12 anos, pouco mais do que eu tinha quando indaguei essa história, morava no interior de Santa Catarina e estava se preparando para ir a uma cidade maior onde poderia terminar o que hoje chamamos de ensino fundamental... e ser professora. Esse era o sonho - e ele foi interrompido porque naquela época era difícil sonhar tendo tantas obrigações a cumprir.
Tudo isso aconteceu cerca de 70 anos antes de a Raquel começar-lhe a contar histórias.
Alguns meses depois, em um domingo de manhã, vimos a vó sentada na mesa da cozinha com um jornal nas mãos. Ela lia só as manchetes (porque as reportagens são em letras pequenas demais para ela ler), mas consideramos um avanço. Nos aniversários, sempre fez questão de assinar seu próprio nome nos cartões de felicitação. Também gostava de receber o carteiro e assinar as encomendas.

Nunca conversamos sobre isso - talvez porque naquela época eu ainda não compreendesse quanta riqueza e inteligência habitava naquele pequeno corpo - mas eu sempre desconfiei de que havia um prazer muito grande em mostrar para as pessoas que ela sabia sim ler e escrever, que podia ouvir histórias e que também saberia reproduzi-las.
Foi assim por muitos anos até que a sua visão ficou ainda pior devido ao agravamento da catarata (que deixou seus olhos com um tom acinzentado bonito, mas nada úteis) e logo que os primeiros sintomas da demência começaram a aparecer, sua mão tremia ao tentar escrever algumas palavras. Certa vez, ao ver um cartão de aniversário, ela se pôs a chorar porque não lembrava mais de como assinar seu próprio nome
Ainda assim, continuou a enriquecer nossas vidas com suas histórias. Foi nessa época, em meados de 2008, que ela me contou sobre suas ambições de ser professora, que me disse pra estudar, ler bastante, me informar... quem sabe um dia eu poderia ensinar a alguém tudo aquilo que estava aprendendo.
Dessa vez, quem se pôs a chorar fui eu.
Queria dar a ela a oportunidade de ter estudado mais, de ter feito faculdade, de ter lecionado. É uma pena que tantos potenciais tenham sido desperdiçados porque antigamente não se podia sonhar tendo tantas obrigações para cumprir.

Mas... sobre tudo o que aprendi na faculdade e nas minhas leituras sobre a terceira idade, um tema que me chamou bastante atenção foi a capacidade humana de dar um novo significado às próprias vivências. Temos uma capacidade imensa de ressignificar, de reviver, de restaurar... Porque da mesma forma que podemos encher de cargas ruins um sentimento que outrora foi bom (vide os ex-relacionamentos, que nos fazem tão bem e de repente deixam só mágoas para curar), também podemos percorrer o caminho contrário, e rechear de sentimentos bons as experiências que, na época em que foram vividas, não foram tão boas assim.
Por quê eu estou falando sobre isso?
Porque hoje em dia, minha avó pouco se lembra dos fatos que a levaram a parar de estudar. Mas na sua memória já bastante comprometida, ela reescreveu o final da história, e hoje, enquanto me vê no computador ou com um livro nas mãos, ela relata sobre como foi bom estudar, e sobre o quanto ela gosta de ser professora e de ensinar as crianças a ler.

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